4 de outubro de 2015

A Estratégia da Interpretação, por Celso Rennó Lima



Quando Lacan toma a seu cargo a tarefa de fazer um retorno ao sentido da obra de Freud, ele estava se propondo um trabalho que transcendia a simples revisão de conceitos e articulações teóricas. Seu objetivo trazia, no seu bojo, consequências sobre a práxis analítica. Práxis analítica como o que se refere ao ato que possibilita colocar o sujeito em condições de tratar o real pelo simbólico.

Tendo isto como alvo é que Lacan vai propor uma direção do tratamento analítico sustentado em três pontos: “Tática”, “Estratégia” e “Política”. Ele explicita sua posição no famoso texto “A Direção da Cura e os Princípios de seu Poder”, nos dizendo que se temos uma ampla liberdade no que diz respeito às táticas (interpretação, ato, corte, escanção) somos muito menos livres na estratégia que se resume na transferência, enquanto que a política não nos deixa nenhuma escolha, uma vez que se trata da “Falta-a-ser”. E mais, para que a tática do tratamento possa ser eficaz em função da política estabelecida, é fundamental que a transferência, enquanto estratégia, esteja instalada. Esta sequência contraria, fundamentalmente os ensinamentos da IPA que preconizavam uma interpretação para que a transferência pudesse se instalar e, então, uma política do “ser igual” pudesse ser desenvolvida.

Partindo, portanto, desta pequena introdução, poderíamos dizer que, sendo uma tática fundamental no tratamento psicanalítico, a estratégia da interpretação se resumiria na “transferência”.

Minha intenção, no entanto, é tomar como causa deste texto o que poderia ser a estratégia de uma interpretação no seu objetivo de promover uma mudança subjetiva, ao mesmo tempo em que esta determinada interpretação permanece, para o sujeito em questão, como uma interpretação memorável[1]. 

Ponho-me a trabalho, para  desenvolver uma hipótese dizendo que uma interpretação só pode ser eficaz e se tornar passível de ser memorável se ela for capaz de promover uma transmutação de registro, ou seja, traduzir “Traços de percepção (Wahrnemungszeichen)” em “Traços duradouros (Dauerspuren)” ou “Traços de memórias (Erinnerungspuren)”. Estando fazendo referência ao esquema do aparelho psíquico proposto por Freud na Carta 52 de sua correspondência a Fliess[2] permito-me introduzir, a partir do desenvolvimento de Lacan, a incidência do traço unário (Einziger Zug) entre as camadas dos “Traços de percepção”, (Wahrnemungszeichen) e o “Inconsciente” (Unbewusst), na medida em que é a presença deste traço (Zug), após o assentimento primordial (Bejahung), o que vai possibilitar a estruturação do inconsciente (Unbewusst) com o seu limite: o “Unbegriff” - conceito criado por Lacan para nos dizer do UM do inconsciente.[3]

Como já convocamos a “Carta 52”, continuaremos com sua referência para dizer que a interpretação vai se mostrar eficaz e permanecer como memorável quando ela for capaz de promover o “despertar de um novo desprazer”(der Erweckung[4] neuerlich Unlust[5]) ali onde “uma memória se comporta como um evento corriqueiro” (Die Erinnerung benimmt sich dann wie etwas Aktuelles) com a intenção de promover uma inibição à liberação de desprazer (Unlust)[6].

Minha proposta se sustenta em uma pesquisa[7] no texto freudiano, onde pude constatar que, ao contrário do que observamos nas traduções (português, inglês, espanhol ou francês) são utilizadas três palavras distintas para a palavra traço que, longe de ser apenas uma questão de retórica, vão nos apontar recortes conceituais diferentes, propiciando a uma formalização do que penso ser uma “interpretação memorável”.

Zeichen - Freud utiliza este significante na Carta 52 quando nos diz: “o essencialmente novo em minha teoria é a afirmação de que a memória se apresenta não de uma forma, mas de várias formas, em diferentes maneiras de traços (Zeichen = indícios, insígnias).”

Ele aí está nos apresentando “Traços de percepção” (Wahrnemungszeichen), o primeiro registro (Niederschrift) “absolutamente incapaz de se tornar consciente, e organizado de acordo com associações por simultaneidade (Gleichzeitigkeitsassoziation)”[8]. Estes traços “nós podemos, nos diz Lacan, dar-lhes imediatamente seu nome verdadeiro de significantes.”[9]

Zug - Este significante é utilizado por Freud em poucas ocasiões: “Uma criança é batida” e “Psicologia das massas - parte VII”, onde Lacan vai buscar o conceito de traço unário (Einziger Zug). Trata-se, de um traço, de um puxão, de uma espécie de sulco inaugural que tem como consequência lógica a Bejahung primordial.

Spur - Esta é a palavra alemã para traço que Freud mais utiliza ao longo de sua obra. Na Carta 52 vamos vê-lo utilizar Spur quando diz que se na camada denominada “Percepção” (Wahrnemung) nenhum traço (kein Spur) do que acontece permanece, isto só será possível quando do segundo registro (Niederschrift): “Inconsciente” (Unbewusst), onde “traços do inconsciente (Unbewusstspuren) são algo equivalentes a lembranças conceituais (Begriffserinnerungen), também inacessíveis à consciência”[10].

Acrescento que é a incidência do traço unário (Einzeger Zug) o que promove a reorganização das “associações por simultaneidade” em lembranças conceituais”, a partir mesmo da instalação do “UM”, da brecha, como causa. 

Freud é bastante claro, portanto, em dizer que é somente quando o traço (Spur), está registrado, é que vai ser possível o próximo passo: “a transcrição (Umschrift), ligada à representação de palavra”[11].

Ora, uma intervenção que se sustentar no deslizamento do sentido permanecerá apenas como traços de percepção (Wahrnemungszeichen) pois, sendo uma indicação, insígnia de um Outro que se apresenta como ideal [I(a)], vai impedir a que uma marca (Zug) possa produzir o  “despertar um desprazer particular liberando um novo desprazer que, então, não pode mais ser inibido”[12]. Este “despertar” só será possível pela ação de um corte, uma separação que, apontando para a brecha que o traço (Zug) deixou ao ser assimilado, vai abrir o caminho (bahnung) para que um traço de memória (Erinnerungsspur) possa se apresentar à transcrição (Umschrift) ligando-se á representação de palavra (Wortsvorstellung). Assim será possível à interpretação produzir ondas.

Em outras palavras, podemos dizer que é a partir deste sulco (Zug) produzido pelo corte que o esvaziamento do sentido vai ocorrer, apontando a “separação entre S1 e S2  que se inscreve sobre a linha inferior do ‘discurso analítico’”,  como nos esclarece J. A. Miller[13], possibilitando uma retificação no trajeto da satisfação pulsional, ao desviar o vetor do sentido, para a causa de desejo.

Esta é a intervenção de um analista que pode propiciar a um sujeito dar um passo a mais e confirmar a sua decisão pela análise, ou seja, promover uma primeira mudança subjetiva.

A confirmação desta decisão, acredito, não se faz pela via do saber, mas sim por um consentimento com a experiência do inconsciente que este corte instala. Quando me refiro a consentimento, tenho em mente o que Lacan nos diz em seu Seminário VII - A Ética da Psicanálise: quando, uma vez cumprido o ato do assassinato do pai da horda primitiva, “se instaura um consentimento inaugural que é um tempo essencial na instituição da lei. Quanto à esta lei, a arte de Freud será vinculá-la ao assassinato do pai, de identificá-la à ambivalência que então funda as relações do filho com o pai, isto é, ao retorno do amor após efetuado o ato.”[14]

Agora a clínica:
Carlos procura análise pela terceira vez. Nas duas vezes anteriores alegou ter feito “final de análise!” o que, de alguma forma, foi atestado pelos analistas. No entanto, seus sintomas persistiam: mais uma vez se encontrava envolvido em dívidas e conflitos familiares.

Sendo um trabalhador que podemos qualificar de compulsivo, Carlos tem passado sua vida pagando as dívidas que faz além de, constantemente, pagar dívidas de seus pais. Isto não só na área financeira pois, até mesmo seu sucesso profissional foi uma forma de “resgatar o nome do pai” que, como explicitou certa vez, sempre fracassou em sua vida profissional.

Durante um bom tempo veio às sessões regularmente e trabalhou bastante. Acredito que, como das outras vezes, foi gradativamente alimentando seus sintomas de sentido, a partir mesmo de seu saber e perspicácia. Com isto, eles foram sendo apaziguados, uma ‘melhora’ logo surgiu e, com ela, idéias de concluir mais esta análise. Mas uma pequena dívida bancária permanecia ali, sempre presente. Ao final de uma sessão, quando mais uma vez Carlos disse que não tinha o dinheiro para pagar, o analista pontuou esses ‘esquecimentos’ dizendo que eles estavam se tornando um ritual.

Esta intervenção marcou um primeiro ponto de virada na história desta análise e o sintoma de Carlos não tardou a se manifestar novamente, reforçado, como nos diz Freud. Após fazer algumas contas, Carlos chegou a conclusão que para saldar sua dívida seria necessário cortar despesas aqui e ali e ter os recibos de sua análise. A esta demanda o analista respondeu com um simples: “aqui não há negociação”.

J. A. Miller, em seu curso “Silet”, nos lembra que uma intervenção preciosa do analista (é) seu eventual ‘sem acordo’ (pas d’accord)[15], pois no inconsciente não há a menor possibilidade de uma harmonia, muito menos de uma negociação, pois falta o significante que poderia estabelecer a proporção sexual.

Assim, esta interpretação estabeleceu, definitivamente, a reviravolta do curso desta análise. O vazio que Carlos encontrou, ali onde esperava a perpetuação de uma sequência plena de sentido, trouxe o “despertar de um desprazer” que estava apaziguado no “Automaton” de significantes regido por sua crença em ser “tão honesto”.

Em outras palavras, a partir do traço (Zug) que se re-inscreveu, o que estava inibido sob as insígnias (Zeichen) do Outro foi escutado e pode promover a transmutação de memórias conceptuais (begriffserinnerungen) em representação de palavras (wortvorstellungen) dando a Carlos condições de efetuar construções em suas sessões[16].

Após algum tempo, um sonho veio testemunhar disto: Carlos sonhou que voltava de um lugar onde vivenciou uma situação que descreveu como muito prazerosa. Apesar de não conseguir identificá-la, acreditava ser uma situação sexual. Ao retornar para sua casa se deparou com dois familiares seus que, muito tristes e num tom acusatório, disseram: “Ela morreu!”

Para concluir posso dizer-lhes que as duas intervenções do analista, aqui descritas, promoveram uma retificação da satisfação exatamente onde ela deve ser feita: ao nível da pulsão[17]. O sonho de Carlos nos diz do trajeto em torno de um vazio que se tornou presente a partir da separação promovida pela interpretação. Este vazio, onde durante toda a sua vida Carlos insistiu em colocar uma mulher - mais exatamente, o olhar de uma mulher -, marca agora o que poderíamos chamar de lugar da verdade. Este lugar que delimita, no discurso do analista, um espaço onde um saber pode ser reinventado: “Descobri outro dia que, por mais que eu trabalhe, não poderei nunca dar à minha mãe o pedaço que faltou a meu pai”, disse Carlos recentemente, se referindo ao “não” com o qual respondeu às novas demandas de sua mãe para quitar suas dívidas.

Hoje, passado um tempo, posso dizer que Carlos fez um longo percurso até que pudesse fazer esta passagem de um saber sobre o inconsciente para consentir com a experiência do inconsciente.

A operação da interpretação, separando S1  do S2, ou seja estabelecendo o avesso da proposta do inconsciente, trouxe à luz o intervalo e a possibilidade de uma construção. Com isto surgiu a esperança de poder ir mais além do sentido, mais além das insígnias, ou traços (Zeichen) do Outro que só fazem produzir um certo conforto. Mais que isso, a incidência da interpretação à maneira de um estilo que sulca a tábua de cera ao imprimir a letra, reabriu os caminhos e fez surgir, em Carlos, o desejo de ir mais além.

Se vamos chamar esta interpretação de uma “interpretação de entrada em análise”, proponho-lhes localizar a “interpretação de final de análise” neste ponto onde, depois de um percurso em que a cena da fantasia fundamental pode ser construída vai acontecer sua incidência vai desmontar o enlaçamento do sofrimento que trouxe o sujeito à análise, ou seja: a fantasia e o sintoma, deixando o sujeito frente a frente com o seu desejo.

O que esta interpretação visa, portanto, é desvencilhar este enlaçamento do Simbólico e Imaginário, que é feito pelo sintoma aí mesmo onde, por estrutura, vemos incidir a falha na transmissão da castração - lugar onde a fantasia vai se articular nos dizendo do desejo que a sustenta e do gozo que a mantêm. Este objetivo só poderá ser alcançado se, ao apontar a impossibilidade do sentido, a interpretação promover uma efração do real na brecha que ela abre no plano das identificações. É então que poderá acontecer uma passagem que vai possibilitar, ao novo sujeito que daí resulta, efetuar um novo enlaçamento do Real, Simbólico e Imaginário.

Esta efração do real, consequência da ultrapassagem do plano das identificações, vai desvencilhar o sujeito das insígnias do Outro que determinaram, até então, um caminho onde uma pulsão fixou seu circuito. Ao final deste circuito fixo, o que vamos ter é sempre uma produção de “mal-estar”, de um sofrimento, uma vez que o resto que ali permanece sob a forma de uma demanda não respondida, será sempre correlativo ao objeto a enquanto “mais-de-gozar”. No entanto, uma vez desfeito este enlaçamento, uma vez abandonada esta trilha das identificações, o que vemos surgir é um horizonte onde o resto da operação vai se apresentar como “causa de desejo”. Onde reinava o “mal-estar”, reenviando a curva pulsional sempre para o mesmo trajeto (Bahnung), vai acontecer o “entusiasmo” do encontro com um objeto a, “causa de desejo”. É o que vai abrir a este “novo sujeito” outras possibilidades, a partir do aparecimento do que Lacan chamou de um “desejo inédito”.


Notas:
[1]Nota : O termo Interpretação memorávelfoi criado por J.A Miller na Seção Clinica, em Paris.
[2]Freud, S., Aus den Anfängen der Psycoanalysis, Imago Pub. London, 1950, pag. 185.
[3]Lacan, J., - Le Séminaire XI - Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Seuil, Paris, 1973, pag. 28.
[4]Nota (1): Erwecken pode significar tanto despertarquanto ressuscitar. No sentido figurativo é usado como provocar.
[5]Nota (2): Lembro-lhes aqui que Unlust é um dos nomes freudianos para gozo.
[6]Freud, S., - Op. cit. pag. 188.
[7]Rennó Lima, C. - Uma brecha no fantasmain Opção Lacaniana, nº11, pags. 55-59.
[8]Freud, S., - Op. cit. pag. 186.
[9]Lacan, J., - Le Seminaire XI ..., op. cit. pag. 46.
[10]Freud, S., - Op. cit. pag. 186.
[11]Ibidem.
[12]Idem, pag.188.
[13]Miller, J.A., Linterpretation à lenvers, in Revue de La Cause Freudienne nº 32, Paris, 1996,     pag. 12
[14]Lacan, J. - Le Séminaire VII - L’éthique de la psychanalyse. Ed. du Seuil, Paris, 1986, pag. 207
[15]Miller, J.A., - Silet, Curso do dia 23/11/94, inédito.
[16]Miller, J.A., - Linterpretation a lenvers, op. cit., pag. 13.
[17]Lacan, J., - Le Séminaire XI, op. cit. pag. 152.

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